domingo, 11 de agosto de 2013

Conto - 9ºano


Cem anos de perdão 


       Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então, é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas. 
      Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes. “Aquele branco é meu”. “Não, eu já disse que os brancos são meus”. “Mas, esse não é totalmente branco, tem janelas verdes.” Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando. 
       Começou assim. Numa das brincadeiras de “essa casa é minha”, paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo, via-se o imenso pomar. E, À frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores. 
       Bem, mas isolada no seu canteiro, estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa pra mim. Eu queria aquela rosa pra mim. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não havia jardineiro À vista, ninguém. E as janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la, como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume. 
        Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros. Até chegar à rosa foi um século de coração batendo. 
       Eis-me afinal diante dela. Paro um instante, perigosamente, porque de perto ela ainda é mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos. E chupando o sangue dos dedos.         
        E, de repente, ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa. 
      O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha. Levei-a para casa, coloquei-a num copo d’água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho. 
        Foi tão bom. 
     Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava. 
       Também roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto de casa, rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja. Nunca cheguei a vê-la, além de uma ponta do telhado. A sebe era de pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da frutinha. Muitas vezes, na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensangüentados. Colhia várias que ia comendo ali mesmo, umas até verdes demais, que eu jogava fora. 
       Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem cem anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens. 

(LISPECTOR, Clarice: Contos brasileiros 2. São Paulo: Ática) 

 01.Com base no texto, é correto afirmar: 

a) O narrador é de primeira pessoa. 
b) O narrador é de terceira pessoa.
c) O narrador é de terceira pessoa porque a garota não participa da história.
d) O texto não apresenta narrador, já que é uma crônica argumentativa.
e) O texto apresenta um narrador onisciente. 

 02. O texto Cem anos de perdão é predominantemente: 

a) Informativo. 
b) Instrutivo. 
c) Argumentativo. 
d) Narrativo. 
e) Expositivo.

 03. A narradora descreve detalhadamente as emoções que sentiu ao praticar as ações. Preencha a segunda coluna para reconstituí-las. 

 Momento da narrativa


 1. A narradora viu a rosa no canteiro do jardim.

2. A narradora desejou ter a rosa para si. 
3. A narradora decidiu roubar a rosa. 
4. A narradora entrou no jardim 
5. Depois que a narradora apanhou a rosa. 
6. A narradora roubava outras rosas. 

Desejos e emoções

(    ) “Até chegar À rosa foi um século de coração batendo” 
(    ) “Foi tão bom.” 
(    ) “Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.” 
(    ) Eu queria poder pegar nela. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume. 
(    ) “ Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era.” 
(    ) “O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão.” 

 Marque a sequência correta: 

 a) 1 – 3 – 4 – 2 – 1 – 5. 
 b) 2 – 5 – 6 – 1 – 3 – 4. 
 c) 4 – 5 – 6 – 2 – 1 – 3. 
 d) 4 – 5 – 3 – 1 – 2 – 6. 
e) 2 – 3 – 4 – 5 – 6 – 1. 


 04. Assinale o trecho do texto em que se encontra o motivo pelo qual a narradora fez a descrição detalhada de suas emoções para o leitor. 

 a) “Levei-a para casa, coloquei-a num copo d’água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.” 
b) “Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então, é que jamais poderá me entender.” 
c) “Começou assim. Numa das brincadeiras de “essa casa é minha”, paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo, via-se o imenso pomar. E, À frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.” 
d) “Muitas vezes, na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensangüentados.” 
e) “Também roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto de casa, rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja.” 

 05. A palavra bonde é muito utilizada em várias expressões de sentido figurado. Assinale a alternativa correta em relação às afirmativas abaixo: 

 I - Perder o bonde: perder uma oportunidade, uma chance momentânea de tomar a atitude correta. 

II - Pegar o bonde andando: referencia ao fato de que alguns passageiros subiam nos bondes em movimento, devido à baixa velocidade com que estes se locomoviam. Por analogia, diz-se de pessoa que dá palpites em conversa alheia iniciada antes de ela chegar, sem saber ao certo qual o assunto da conversa.  

III- Pegar o bonde errado: diz-se da pessoa que se enganou redondamente e, ao tomar uma descrição, teve um mau resultado em negócios ou atividades. 

a) Apenas II e III estão corretas. 
b) Apenas I e II estão corretas. 
c) Apenas I e III estão corretas. 
d) todas as afirmativas estão incorretas. 
e)Todas as afirmativas estão corretas.

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